sábado, 28 de fevereiro de 2015

Carta 16 A Torre ou Casa de Deus (A Fragilidade)

Liberto-me do meu passado e deixo para trás o que fui, tornando-me o que sou hoje. Reinicio para ser novamente eu mesma. Lavo os traços do rosto e recupero o olhar sobre as pequenas coisas. A distância afasta-me dos pensamentos obscuros, e subo à torre para olhar o horizonte. Vejo o contorno das árvores sobre os lagos, as flores que se dobram à brisa, as pedras alinhadas, os monumentos, o perfil dos faraós esculpidos, a suntuosidade de um tempo que não vivi. As mudanças ocorrem lentamente, mas a queda é repentina. A romã tomba quando está madura. As tâmaras são mais doces se colhidas no ponto. Redescubro minha face sobre as águas. A mulher que fui não é a mesma que está hoje à beira do Nilo. Movo as peças do tabuleiro de um jogo que não termino. Nunca seremos como somos agora. Esses mesmos seres que habitam as planícies e erguem pirâmides à sua memória. Sinais de nossa passagem. Longas dunas se movem silenciosamente ao sopro do vento.

1/03/2015 - 1h21


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Carta 17 A Estrela (A Esperança)

Estrela da esperança, mãe do futuro, em tuas mãos coloco meu presente, o céu da alma vestido em meu corpo, pontilhado de caminhos e bifurcações. Abro o mapa celeste e lá encontro os mares que não vejo na terra. O céu imerso sobre nós, despejando suas estrelas à noite, invisíveis olhos a nos mirar durante o dia. Olho para tudo à minha volta e vejo os homens se movendo sobre a areia. Os barcos deslizando sobre as águas. Os pedregulhos arremetidos ao leito do rio. As fendas das tumbas que se fecham sobre nós. A luz do sol a brilhar, enquanto a lua se despede no horizonte. Tríades divinas sorriem ao fim do dia. O céu toma novamente a cor púrpura e acende as estrelas. Tilintam, ofuscadas por seu próprio brilho. O relógio de água move-se lentamente. O sol e a estrelas medem o nosso tempo. 

25/02/2015 - 22h05 


Carta 18 A Lua (O Crepúsculo)


Retorno à fonte das águas em que me banho. Sorvo a lua refletida nas águas. Corre o rio por minhas mãos e braços, a refrescar a pele. Sou tua serva e irmã, reflexo dos meus sentidos, colada à tua imagem como contorno do meu rosto. És a deusa refletida sobre o espelho d'água, teus lábios a dizer-me palavras para me consolar. Nasce a lua no horizonte, dourada e imensa, a derramar seus raios sobre a terra. Verte a miragem dos meus olhos, derrama tua luz em minhas entranhas, faz de mim receptáculo de tua origem, dando-me força e alento. Respiro o ar iluminado. As folhas oscilam na brisa que me envolve. Sombra e luz da lua. Nascimento de minhas raízes. Desenha a minha face na argila. Devolve-me os olhos com que vejo. Dá-me a língua e as palavras. Faz-me ouvir e silenciar.

25/02/2015 - 21h40





quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Carta 19 O Sol (A Inspiração)

Aton, deus Sol, de toda a força do mundo, traga sobre a terra sua energia e calor, provendo aos homens o nascimento da semente, a concepção dos peixes, as nuvens acima de nossas cabeças, e fartura por onde passamos. A chuva, a tempestade, a tormenta passam diante de seu furor. Aguardamos os raios da manhã para depositar nossas oferendas ao novo dia. Venha, Sol, tecer as cores da natureza diante de nossos olhos. O Sol que faz brilhar a fonte, que incha os frutos, e cria o ar que respiramos. Esse o Sol do meu rei, que reina sobre a planície e todos os charcos ao longo do Nilo, por onde navegamos. Eis a terra abençoada por seu furor, Aton, que sobe aos céus e desce no poente para nos lembrar que também temos um fim. Esse o deus único que pacifica nossas preces e nos liberta com sua luz.

20/02/2015 - 3h29


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Carta 20 O Julgamento (A Ressurreição)

Julgaram-me pelo que fiz e pelo que não fiz. O que dei ao mundo, o mundo me tomou. O que fiz por mim, perdi ao longo do caminho. Nada levei para mim. Nada trago comigo. Deixei o que mais quis e o que quis não tomei. Nasci mil vezes as mil auroras a que assisti. Desci ao fundo do poço para erguer-me novamente, não a criança que fui, mas a mulher que nasci para ser. Sou única entre as rainhas do Egito. Ninguém me supera em beleza e pureza. Fui fiel ao meu rei até o fim dos seus dias. E os meus sepultei ao lado dele quando sua tumba se fechou. Nossos nomes foram apagados dos templos, nossas faces riscadas. Não viveremos mais o presente, somente o futuro. Minha cabeça ficará acima dos ombros, como sinal de nossa ventura. O olho esquerdo cego. O direito a ver eternamente. 

19/02/2015 - 1h23


Carta 21 O Mundo (A Transformação)

Desço ao mundo dos homens, o inferno que fiz para mim, minha terra esfacelada. Vivi à volta de todos, orei pelos filhos e marido, tudo que pude fazer por eles eu fiz. Agora não resta mais nada. Sou devolvida à terra que me criou. Sou filha de Aton e esposa de Akhenaton. A realização dos meus desejos não atendeu ao desejo de todos. Sucumbo à minha própria vida, que foi, ao lado do faraó, a única redenção que conheci. Esta a minha recompensa, o meu lugar no mundo. A vida é transitória. E como flor efêmera do Nilo, perco meus braços para nadar para longe. Toda a riqueza do mundo estava em mim. E nos braços enérgicos do rei, conheci a fortuna. O manancial de sua candura. A alegria. O ápice de minha existência só foi possível ao seu lado. E com ele soube ser quem eu era. A minha ventura nunca seria maior sem ele. E vencemos as intempéries, construindo um novo mundo. 

19/02/2015 - 1h13


domingo, 8 de fevereiro de 2015

Carta 22 O Bobo (O Regresso)

"Em teu segredo, não entre minha alma, nem em teu porto meu navio". Não te iludas com falsas promessas, nem com a língua viperina de teus inimigos. Aqueles que te querem bem muitas vezes só dizem em silêncio o que pensam. Pergunta a eles, se queres que te contem seus pensamentos. Os que te olham de perto, muitas vezes sentem inveja do que veem. Mostra-lhes um espelho: fala deles, ressalta suas qualidades (porque eles também as têm). Assim desviarão seus olhos sobre ti e verão apenas a si mesmos e dirão: "Como ele é bom! Como fala bem de mim!" E não mais irão ofender-te. Cuida de teus amigos e de teus inimigos ainda mais, pois estes só querem ser iguais a ti. Sê bom em todos os sentidos, mas guarda distância para que não te agridam. Não entres numa casa sem seres bem convidado. Nem convida para a tua quem queira te prejudicar. À tua porta, batem todos. Abre apenas para quem te queira bem. E àqueles que não te querem bem, mostra-lhes o espelho, para que vejam quem são.
1/11/2015 - 1h50